31 de dezembro de 2011

para ler em silêncio

Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô.


José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, p. 129.
(imagem)

30 de dezembro de 2011

29 de dezembro de 2011

idealidades

«O dinheiro deve estar tão abaixo de um cavalheiro que quase não vale a pena preocupar-se com ele.»

Fiódor Dostoievski, O Jogador, tradução de António Pescada, Lisboa, Biblioteca de Editores Independentes, 2007, p. 22.

24 de dezembro de 2011

oh!, o bicho em nós...

A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos antes de sabermos alguma coisa sobre a outra pessoa. No momento inicial compreendemos tudo.

Philip Roth, O Animal Moribundo, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 2.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006, p.22.














imagem daqui

"MISSA DO GALO"

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

Incipit do conto "Missa do Galo", de Machado de Assis - Contos Escolhidos, São Paulo, Editora Martin Claret, 2003, pp. 11-17.

23 de dezembro de 2011

14 de dezembro de 2011

um poema de José Gomes Ferreira

(Finjo que não vejo as mulheres
que passam, mas vejo.)

De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos,
mal viu a menina atravessar a rua,
saltou num ímpeto de besouro
e despiu-a toda...

E a Que-Sempre-Tanto-Se-Reacata
ficou nua,
sonambulamente nua,
com um seio de ouro
e outro de prata.

In Eros de Passagem -- Poesia Erótica Contemporânea, selecção e prefácio de Eugénio de Andrade, Porto, Limiar, 1982, p. 31.

(lido na sessão de 7 de Dezembro de 2011)

13 de dezembro de 2011

11 de dezembro de 2011

A Corte chega ao Rio de Janeiro

   Rio, 1808  (daqui)
     Os emigrados chegavam a uma sociedade intensamente ritualista --como Lisboa, mas com características africanas. Procissões religiosas, comuns no Portugal do início do século XIX, misturavam-se com outras tradições -- o trovejar dos tambores africanos do batuque, a dança afro-brasileira; a capoeira, uma provocante arte marcial praticada nas comunidades de escravos, incomodativa sem dúvida para  espectadores europeus; bem como os ritmos mais subversivos, como a queima da efígie de Judas, que acabou por ser proibida pelos colonos atemorizados. As ruas eram coloridas, mesmo carnavalescas; mas eram também brutais e ameaçadoras, divididas pelas tensões subjacentes a uma sociedade assente na escravatura. 
     Os exilados passaram as primeiras semanas em estado de choque cultural e emocional. [...]

Patrick Wilcken, Império à Deriva -- A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821, tradução de António Costa, 9.ª edição, Porto, Civilização Editora, 2007, p. 111.

9 de dezembro de 2011

SONETO DE AMOR, José Régio

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., -- unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... -- abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

Eros de Passagem -- Poesia Erótica Contemporânea, selecção e prefácio de Eugénio de Andrade, Porto, Limiar, 1982, p. 27.

(lido na sessão de 7 de Dezembro de 2011)

8 de dezembro de 2011

5 de dezembro de 2011

ROÍ AS UNHAS

Roí as unhas, desvairado,
Quando as balas zuniam e matavam,
Quando atirei à noite escura
E esperei a morte.
Roí as unhas, transtornado,
Quando os amigos rezavam e choravam,
Quando fazia sutura
À ferida… à sorte.

Roí as unhas, como um louco,
Quando senti que era nada,
Atirado à noite escura,
P’ra matar.
Roí as unhas, pouco a pouco,
Sentindo a vida, já parada,
Fugindo da carne nua…
Tudo a acabar!

Roí as unhas, revoltado,
Pensando na mãe, no pai, na terra…
Farrapo ao vento,
A tiritar.
Roí as unhas, destroçado,
Moído de saudades, só, perdido…
Arma de guerra:
Morte a chorar.

Roí as unhas, mordi os dedos,
Transpirei suores gelados
De febres, agonias, incertezas,
Saudade e medo.
Roí as unhas, comi os dedos,
De olhos abertos, arregalados,
Sentindo, na garganta, presa
A corda do degredo…

Roí as unhas, roí meu corpo,
Em ânsias de voltar, de reviver…
Reviver… de reviver:
(Eu era a morte, dada e recebida!...)
Roí as unhas, aniquilei-me;
Fiz-me fera… e espantalho…
Matei e morri:
Regressei, morto…
Eu roí as unhas…
Roí as unhas…

Lido na sessão de 2 de Dezembro de 2011

Da guerra que Portugal travou, em África, de 1960 a 1974, chegou este poema, à minha mão. Do autor, sei que o estado o ferreteou com o número 13443070, quando, a pretexto de servir a pátria, o obrigou ao serviço militar.

4 de dezembro de 2011

Elogio dos clubes de leitura

     As comunidades de leitores têm muitas vantagens para os ditos. Trocas de pontos de vista, de percursos de leitura, de experiências de vida. E obrigam-nos a conhecer livros e/ou autores que improvavelmente leríamos, não por qualquer embirração de partida (ou também por isso...), mas porque um leitor tem sempre as suas prioridades e as suas listas, que normalmente (falo por mim) não são cumpridas.
     Por várias vezes sucedeu-me, aqui no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro, defrontar-me com autores desconhecidos e que foram, para mim, uma extraordinária revelação, como foi o caso de Javier Cercas -- de que nunca ouvira falar -- e o magnífico A Velocidade da Luz; ou o extraordinário ensaio de Amin Maalouf, Um Mundo sem Regras (aqui, não era o autor o desconhecido, mas o livro) ou A Religiosa, de Diderot, cuja leitura somente se me ofereceria no âmbito de uma pesquisa improvável sobre as adjacências do século XVIII ou questões colaterais.
     De valter hugo mãe só lera poesia, três livros, um dos quais, A Cobrição das Filhas, me deixara uma boa impressão. Já tivera dois outros romances dele debaixo de olho, mas a oportunidade nunca se concretizara. Por outro lado, tenho o defeito ou a qualidade de não ler escritores que estejam na crista da onda, como é o caso. Teria várias razões para dar, mas agora não é o momento. O que me importa registar é que se o vhm surfa a onda, fá-lo com muito mérito. A Máquina de Fazer Espanhóis é um grande livro de um não menor escritor, que tem o que dizer e di-lo com substância, e sabe como o fazer, fazendo-o com mestria.

2 de dezembro de 2011

valter hugo mãe fotografado por Nélio Paulo

Jaime Ramos e Isaltino de Jesus

As personagens Jaime Ramos e Isaltino de Jesus são dois detectives da Polícia Judiciária. Incumbidos por Francisco José Viegas de resolver os mais variados crimes, veêm-se agora na contigência de serem personagens "roubados" por valter hugo mãe. E esta, hein?

Romances Protagonizados por Jaime Ramos e Isaltino de Jesus
  • Crime em Ponta Delgada (1989)
  • Morte no Estádio (1991)
  • Um Crime na Exposição (1998)
  • Um Crime Capital (2001)
  • Longe de Manaus (2005)
  • A Poeira que cai sobre a Terra (2006)
  • O Mar em Casablanca (2009)

valter hugo mãe internaútico

O Esteves sem Metafisica

...
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
...
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
A Tabacaria, Álvaro de Campos, 15-1-1928