31 de março de 2014

"O ELÉCTRICO 16"

Peguei hoje no livro, depois de ter passado os olhos pelas notícias do dia: Medvedev visita a Crimeia, Hollande perde nas municipais, anuncia-se um “alerta amarelo” para toda a costa portuguesa e realiza-se – o que pode ser o pior de tudo – um conselho de ministros extraordinário. Acredito que nada disto me vai impedir de acabar a leitura: quarenta e tal páginas já cá cantam. E que páginas!

23 de março de 2014

EFEITO MÁGICO DAS LUZES






                                               EFEITO MÁGICO DAS LUZES
                                                                                                            

                                                                                                                             A Vasco Graça Moura,
                                                                                                                             CCB, 22.03.2014                
 

                        vou pelos vestígios de luz das palavras
                        com as quais ilumino a tarde
                       compondo horas menos solares?


                      vou pelos vestígios de luz, disse
                      assim ouço melhor algumas vozes,
                      o ciciar do vento também

                      o quase possível do poema-vida.
                     o real?
 

                    vou pelos vestígios,
                   escavando na casca do poema-vivo
                   o efeito mágico de luzes, algures.

 

 

 

21 de março de 2014

POEMA EM PROGRESSO






 
 
 
                                              
                   TORSO DE MULHER
 
 
 
Derrubado entre musgos
o mármore antiquíssimo
consome no espaço do colo
a matutina e frígida luz.
 
 
 
 
 
 

15 de março de 2014

CADERNOS CALIBAN

 Máscara de Angoche
Lourenço Marques, 1971. Capa e segunda página de um dos preciosos "Cadernos Caliban", adquirido naquela cidade do Índico no ano da sua publicação. A coordenação destes cadernos de poesia estava a cargo de J. P. Grabato Dias e Rui Knopfli. Além dos coordenadores, colaboraram neste número Jorge de Sena, Eugénio Lisboa (com uma tradução de T. S. Eliot), José Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba e Jorge Viegas.
Caliban é personagem de A Tempestade, de W. Shakespeare. J. P. Grabato Dias era um dos pseudónimos de António Quadros (pintor).

9 de março de 2014

POESIA E PROSA (II)


TEXTO ESQUISITO E ESCASSO (NÃO DÁ PARA ADORMECER) ONDE SE FALA DO LEITO DE PROCUSTO, DE OUTROS MITOS E DE IDEIAS DE GRANDES MESTRES MALBARATADAS PELO ESCREVENTE.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
            Do que escrever em prosa.
 
CESÁRIO VERDE, “Contrariedades”
 
Respeite-se o sentimento do grande Cesário, cada um nasce para a sua arte. “Contrariedades” é um belo poema: dezassete quadras de rima interpolada (ABBA) estruturadas segundo três versos de doze silabas (alexandrinos) com remate de um verso hexassilábico. Foi bom ouvi-lo na sessão da passada sexta-feira do Clube de Leitura.
A opção entre verso rimado e verso branco, como entre verso medido e verso livre, é hoje uma questão resolvida: a rima e a métrica são auxiliares rítmicos do poema, mas são igualmente uma limitação do poeta. Mário de Andrade, vulto grande do Modernismo brasileiro, escreverá em 1922 no “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia Desvairada: “Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas (…) Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela.”
Sem rima nem métrica, o que distingue a poesia da prosa? Disse Shelley que  “a distinção entre poetas e prosadores é um erro vulgar”, acrescentando: “Um poema é a própria imagem da vida, expressa na sua verdade eterna. Uma diferença existe entre uma história e um poema, que é esta: uma história é um catálogo de factos desligados, que não possuem nenhuma outra conexão que não seja o tempo, lugar, circunstâncias, causa e efeito; o poema é a criação das acções de acordo com as formas imutáveis da natureza humana, como existem no espírito do Criador, que é ele próprio a imagem de todos os outros espíritos.” E Edgar Allan Poe não anda longe desta ideia. Segundo ele, a diferença entre poema e romance é que aquele tem por seu objecto um prazer indefinido, enquanto o romance se realiza no domínio do prazer definido. Ou seja: “O romance apresenta imagens perceptíveis com sensações definidas, e a poesia com sensações indefinidas, para cujo fim a música é uma parte essencial, dado que a nossa concepção mais indefinida é a compreensão de um som doce.”
No prefácio-dedicatória de O Spleen de Paris, diz Baudelaire: “Qual de nós não sonhou, nos seus dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, suficientemente maleável e suficientemente contrastante para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”
Não é então da condição perene da poesia nem a rima nem a métrica. O poema pode estar disposto em prosa, a prosa pode ser poesia. Assim o entendeu Wordsworth, para quem a arte verbal abriga, sob uma mesma concepção estética, tanto a poesia metrificada como a prosa artística, sendo que “algumas das partes mais interessantes dos melhores poemas pertencem rigorosamente à linguagem da prosa, quando a prosa é bem escrita.
Confuso? Não será por falta de clareza dos mestres citados; só se for pelo pouco jeito do escrevente que ainda mal entende destas coisas e já se apressa em as “explicar” aos outros. Desculpem-no lá, coitado.   
 
Citações tiradas de:
= BAUDELAIRE, Charles – O Spleen de Paris, tradução de Jorge Fazenda
Lourenço, Relógio de Água Editores, 2007.
= DOLOZEL, Lubomir – A Poética Ocidental, tradução de Vivina de Campos Figueiredo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
= POE, Edgar Allan – Poética (textos teóricos), tradução de Helena Barbas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
= RIBEIRO, Maria Aparecida – Literatura Brasileira, Lisboa, Universidade Aberta, 1994.
= SHELLEY, Percy – Defesa da Poesia, tradução de J. Monteiro-Grillo, Lisboa, Editores Reunidos, 1996.
= VERDE, Cesário – O Livro de Cesário Verde, Lisboa, Editora Ulisseia, s/d.
 
E em jeito de nota final: safa!, este texto quase tem mais linhas de citações do que de escrita original. Uma verdadeira arte de recorte e colagem!
 
 

8 de março de 2014

POESIA E PROSA (I)

Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
Abaixo o mistério da poesia.

ANTÓNIO GEDEÃO, "Abaixo o Mistério da Poesia"

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente, (...)

ALBERTO CAEIRO, O Guardador de Rebanhos, XXVIII



O GRITO DE DIGNA PARDO ANTE A QUEDA MORTAL DE SEU AMO JUVENAL URBINO* 

Foi às quatro horas e sete minutos da tarde de Domingo
de Pentecostes, pairavam nos ramos altos da mangueira
as línguas flamejantes do divino Paracleto. O calor prenunciava
a chuva, o mar rumorejava dentro de todos os búzios.
O papagaio palrava insídias e uma escada romba preparava-se
para escrever uma página da história da infelicidade.
Nem sequer teve tempo de encomendar a alma: o corpo
desprendeu-se da árvore  como um fruto podre
lançado ao solo em súbita demolição de músculos e ossos,
e nenhum anjo-da-guarda  saiu dos catecismos para  lhe aparar
a queda. O grito da criada, Digna Pardo de seu nome, trespassou
de pânico as cúpulas de ouro da cidade velha, os pássaros
calaram-se, enquanto Deus, indiferente ao destino dos homens,  
sorria de ócio e tédio na sombra roxa da sua eternidade.

* Digna Pardo e Juvenal Urbino são personagens de Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos da Cólera

 Nota: poema (ou prosa?) publicado anteriormente em www.comolhosdeler.blogspot.com

7 de março de 2014

para sempre seja louvada!...

Regresso aO Amor nos Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez, quase um quarto de século após a primeira leitura. Não só nada se perdeu do encanto desta história de amores contrariados, penados e gloriosamente recuperados, como o cabedal de leitura entretanto granjeado e a vivência decorrida desde essa época de jovem adulto me deram, à uma, a faculdade de reconhecer a mestria literária quando a tenho diante dos olhos, essa mestria que já então me deslumbrara -- um deslumbramento talvez ingénuo e pouco contaminado -- quando lera este e mais livros do Gabo; e à outra, a noção clara e firme de que este romance encerra uma das grandes personagens femininas da literatura universal, Fermina Daza. Por isso, louvada seja a Literatura!

6 de março de 2014

O amor antigo, Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
 
(Sessão de 7 de Março)

A Psicologia do abandono

Gabo, 87


Gabriel García Márquez nasceu em Arataca, Colômbia a 6 de Março de 1927.

5 de março de 2014

assim começa O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA:

«Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino senti-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penunbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador cianeto de ouro.»

Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera [1985], tradução de Margarida Santiago, 2.ª ed.,  Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.